Pérolas do Preconceito


Rir da ignorância gramatical alheia é reforçar ainda mais o abismo social que separa as classes sociais deste País.

O humor é uma arte de resistência. Muitos defendem que o humor não pode ter limites. Pessoalmente, sou bastante libertário neste assunto, acho que o humor pode muito, mas não pode tudo.

Recebi alguns e-mails com o título de “Pérolas do Enem”. O Enem é o Exame Nacional do Ensino Médio, uma prova que o Ministério da Educação aplica para diagnosticar a educação brasileira. Algumas incorreções, sobretudo gramaticais, viram peças de humor, não apenas de internautas, mas de gente como Jô Soares, que já abriu o programa diversas vezes com as “pérolas” dos alunos.


Não consigo rir. Acredito que, nesse assunto, o humor atravessou a fronteira do bom senso. Para mim, o humor só é válido quando a “vítima” ri de si, ou, mesmo que não goste, sabe exatamente por que estão escrachando seu comportamento. Acho difícil que alguém que tenha escrito “O serumano no mesmo tempo que constrói também destrói, pois nos temos que nos unir para realizarmos parcerias” consiga rir de suas inadequações, tanto gramaticais quanto de coerência.

É neste ponto que o humor deixa de ser uma peça de resistência e passa a ser instrumento da opressão. Meia dúzia de pretensos donos da língua pegam frases descontextualizadas e humilham aqueles que não têm domínio sobre a norma culta. Humilhação pura e simples. 

Afinal, os estudantes que prestaram o exame não são celebridades fajutas, nem políticos fanfarrões nem novos-ricos ridículos. São pessoas que, de uma forma ou outra, estão se expressando como podem, e se escrevem “errado” (bem entre aspas, mesmo) é muito mais por culpa de um sistema educacional excludente e indiferente do que por falta de interesse ou coisa que o valha.

Rir da ignorância gramatical alheia é reforçar ainda mais o abismo social que separa as classes sociais deste País, é reforçar toda uma estrutura política, social, ideológica que permanece no poder. A cada gargalhada que a platéia do Jô Soares dá quando ele repete as frases do Enem; a cada e-mail transmitido com as “pérolas” e com os comentários infames dos “sabedores da língua” (bem entre aspas, mesmo), aumenta mais a exclusão e, principalmente, diminui a força do humor como arte, pois ele passa a servir para uma minoria se divertir, quando a maioria segue seu próprio rumo, virando-se num analfabetismo funcional, que tem lá o seu próprio humor.




Normalmente, quem usa o “não-saber” do outro para rir e sentir-se superior tem a certeza de que a sua inteligência nunca vai ser questionada. Pura balela. Na mesma proporção que alguém tece um comentário torpe sobre a ignorância alheia, pode receber de volta um comentário torpe sobre a própria ignorância. O humor é uma estrada perigosa. Num dia você atropela, no outro é atropelado. Rir daquilo que o outro não sabe é fácil. Quero ver é rir daquilo que você mesmo não sabe, rir da própria ignorância. E isso, os que organizam e repassam as “peroras do Enem”, parecem não conseguir.

RETIRADO DO BLOG:

http://ciadeorquestracaocenica1.zip.net/arch2007-09-16_2007-09-30.html

Comentários

  1. Concordo e acho muito sem graça tudo isso.
    Quando recebo email desse tipo, faço questão de não ler, pois sinto-me muito mal ao ver que nossas escolas ainda não conseguem preparar bem os seus aprendizes. O pior é que o estudante com deficiência ou defasagem, faz parte de alguma Instituição e que os maiores responsáveis por todos esses erros grmaticais e de concordância, na realidade são dos profissionais envolvidos que não fazem nenhuma questão de mudar esse quadro. Como educadora sinto-me envergonhada e ao ivés de rir, tenho vontade de chorar.
    Beijos Rê!!

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  2. concordo que o humor não pode tudo e que ironizar sobre erros de alunos é muito triste...

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  3. Não considero preconceito quando se publicam estes tipos de provas quando não se identifica o autor. Muito pior do este tipo de preconceito é a perseguição religiosa, étnica, regional e tantas outras que vemos por aí e por aqui também.

    Tenho lido muitos artigos publicados aqui mesmo com tendência preconceituosa, principalmente atacando religiões alheias. Não sou de religião nenhuma mas respeito o direito à crença de qualquer um. E não consigo me segurar, reajo em defesa do ofendido e lasco um comentário desaprovando de forma o mais sutil possível para também não parecer eu mesmo preconceituoso.

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  4. Sinceramente tb discordo do seu texto, apesar de tê-lo achado muito bom. Eu considero isso como uma forma de mostrar, publicamente, que o ensino do país está da forma que está e que eles escrevem dessa forma não porque querem. Sou professora de Português e sei que muitas vezes é também porque querem.

    Fica a dica.

    beijos pro autor do texto e pra dona do blog.

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